A vida é feita de mudanças ou transformações e uma delas é a dos alimentos crus em cozidos. Já ouvimos dizer várias vezes que “somos o que comemos” e, portanto, manter hábitos alimentares saudáveis é um dos pré-requisitos para uma melhor qualidade de vida.

Mas, hábito saudável significa comer alimentos crus ou cozidos? Diferentemente dos demais animais, que se não houvesse a interferência do homem somente se alimentariam de alimentos crus, nós, seres humanos, temos a alternativa de, não apenas por hábito saudável, mas também por prazer e paladar, nos alimentarmos de alimentos crus e cozidos.

Nessa mudança ou transformação de alimentos crus em cozidos, fenômenos químicos e físicos interessantes estão envolvidos. Ao passo em que durante o processo de cozimento os alimentos vão se aquecendo, suas moléculas vão se modificando, fazendo com que, após determinado tempo, cheguem ao que consideramos ponto ideal de cozimento. 

Ao nível do mar e em um recipiente qualquer aberto, ao ser aquecida, a água após determinado tempo chega no máximo à temperatura de 100 ºC (temperatura de ebulição). Se o alimento não estiver suficientemente cozido e se achar que está levando muito tempo para isso, de nada adianta aumentar a chama do gás do fogão, pois será desperdício. Ocorrerá neste caso apenas o aumento da vazão de vapor. O que estiver em processo de cozimento levará o mesmo tempo para chegar ao estado ideal, independentemente do tamanho da chama, já que a temperatura se manterá a mesma. Com o calor do aquecimento ocorre a mudança de fase da água do estado líquido para vapor e durante este processo a temperatura não aumenta. Porém, há a alternativa de se elevar a temperatura da água acima de 100 ºC, aumentando-se a pressão dentro do recipiente onde o alimento está sendo cozido, e fazer com que o alimento cozinhe bem mais rápido. Para isto existem as “panelas de pressão”.

A sequência de efeitos durante o funcionamento de uma panela de pressão, que conseqüentemente levam ao cozimento mais rápido dos alimentos, é a seguinte:

– O calor da chama aquece a água nela contida até a temperatura de ebulição (100 ºC), à pressão normal, quando a panela estiver hermeticamente fechada.

– O calor da chama gera vapor, porém não aumenta a temperatura. Ele serve para fazer com que o processo de mudança de fase da água do estado líquido para vapor ocorra. Como o vapor gerado dentro da panela não tem saída, a pressão aumenta.

– Com o aumento da pressão, a temperatura de ebulição da água passa a ser um pouco mais alta do que 100 ºC.

– O calor da chama continua aumentando a pressão que, por sua vez, faz aumentar a temperatura de ebulição da água. Este ciclo continua até alcançar o regime estável determinado pela pressão máxima que a válvula de alívio (de segurança) da panela permite. Tal pressão corresponde ao peso colocado sobre a área da seção transversal do pequeno tubo que se projeta para fora, em geral, no meio da tampa da panela. A partir deste momento a panela não é mais hermética em termos de fechamento, pois permite uma vazão constante de vapor pela válvula de segurança. A temperatura máxima a que se pode chegar é em torno de 120 ºC e a pressão em torno de 180 kPa (1,8 atm).

Sem entrar aqui na discussão dos pós e dos contra no uso das panelas de pressão, uma coisa é certa; elas vieram para facilitar a vida das pessoas!!!

Como metrologistas, não poderíamos perder a oportunidade de aqui mudarmos um pouco o rumo da conversa e falarmos tecnicamente a respeito da grandeza física que viabiliza a transformação de alimentos crus em cozidos, independentemente disso ocorrer por meio do uso de recipientes abertos, como uma panela comum, ou hermeticamente fechados, como uma panela de pressão. Referimo-nos à grandeza “temperatura”.

A temperatura é uma das grandezas físicas mais conhecidas e mensuradas. Ela é uma medida da energia cinética média dos átomos de uma substância. Quando tocamos um corpo qualquer para sentirmos sua temperatura, na realidade, sentimos as vibrações térmicas dos átomos que o constituem.

De maneira geral, a energia em uma molécula de gás é diretamente proporcional à temperatura absoluta. Conforme a temperatura aumenta, a energia cinética por molécula aumenta. Quando o gás é aquecido, suas moléculas se movem mais rapidamente. Isto produz um aumento de pressão, no caso do gás estar confinado em um espaço de volume constante, ou um aumento de volume, no caso da pressão permanecer constante.

Os átomos e moléculas em um gás nem sempre se deslocam a uma mesma velocidade. Isso significa que há um intervalo de energia (energia de movimento) entre as moléculas que se deslocam em direções aleatórias e a diferentes velocidades.

Temperatura é também uma medida do calor ou energia térmica média das partículas em uma substância e não depende do número de partículas em um objeto. Por exemplo, a temperatura em uma panela pequena de água fervendo é a mesma que em uma panela grande, mesmo que esta seja maior e, portanto, possua também uma maior quantidade de moléculas.

As escalas comumente usadas na medição de temperatura são a Escala Celsius (°C), a Escala Fahrenheit (°F) e a Escala Kelvin (K). O kelvin (K) é a unidade de temperatura termodinâmica no Sistema Internacional de Unidades (SI) e uma das sete unidades de base. O kelvin era definido como a fração de 1/273,16 da temperatura termodinâmica do ponto triplo de água. Porém, em 20 de maio de 2019 entrou em vigor a nova definição baseada na constante de Bolzmann.

A menor temperatura é o zero absoluto, no qual o movimento térmico de todas as partículas fundamentais na matéria atinge um mínimo, mas não necessariamente param de se movimentar. O zero absoluto é indicado como sendo 0 K ou -273,15 °C ou -459,67 °F.

Quando medimos temperatura, não estamos realmente medindo a verdadeira temperatura termodinâmica. Na realidade, estamos medindo T90, que é a temperatura da “Escala Internacional de Temperatura” (ITS-90), definida em 1990.

O ponto triplo da água depende de uma série de fatores incluindo pressão e a precisa composição da água. Por conta disso, em vez de se depender do ponto triplo da água, torna-se vantajoso proceder como no caso de outras unidades. Isto é, relacionar a unidade (kelvin) a uma constante fundamental e fixar o valor desta constante. Para o kelvin, a constante correspondente é a constante de Boltzmann k, porque temperatura sempre aparece como energia térmica k·T nas leis fundamentais da física.

Relembrando alguns conceitos, tem-se que a energia cinética de um gás ideal é igual a (1/2) m·v2, onde m é a massa e v é a velocidade. Segundo a Lei dos Gases Ideais, P·V = n·R·T = N·k·T, onde P é a pressão, V é o volume, n é o número de mols, R é a constante universal dos gases ideias, T é a temperatura, N é o número de moléculas e k (constante de Boltzmann) que é igual a R/NA, onde NA é a constante de Avogadro, sobre a qual não discutiremos aqui.

A energia cinética média por molécula em um gás ideal é igual a (3/2)k·T. Portanto, a constante de Boltzmann correlaciona de forma direta a energia contida em cada molécula de um gás ideal com a sua temperatura.

Para a redefinição, k teve de ser determinado com baixa incerteza através de diferentes e independentes métodos. Portanto, a determinação da constante de Boltzmann com alto nível de exatidão foi uma tarefa desafiadora para a metrologia internacional. Em princípio, a constante de Boltzmann foi determinada por meio de um termômetro de referência, medindo-se k·T a uma temperatura conhecida como a do ponto triplo da água.

Os Institutos Nacionais de Metrologia (NMIs, sigla do termo em inglês) espalhados pelo mundo têm o compromisso de disseminar as unidades de medida do SI, a partir da padronização das mesmas, objetivando a confiabilidade dos resultados de medições realizadas nos vários níveis hierárquicos da metrologia. Referimo-nos às medições realizadas nos próprios NMIs, chegando àquelas realizadas nos chamados “chão-de-fábrica” de ambientes industrias ou até mesmo àquelas voltadas às relações comerciais nacionais ou internacionais. Uma dessas unidades é o kelvin.

Por conta de certa “fragilidade” na definição do kelvin com base no ponto triplo da água, em 20 maio de 2019, entrou em vigor sua redefinição, assim como de outras unidades de base do Sistema Internacional de Unidades (SI). A redefinição destas se dá por meio de uma base sólida e invariável, consistindo de constantes fundamentais. O kelvin baseia-se, agora, na constante de Boltzmann, que pesquisadores do Physikalisch-Technische Bundesanstalt (PTB), na Alemanha, determinaram por meio de um termômetro a gás de constante dielétrica.

A constante de Boltzmann indica como a energia térmica de um gás (isto é, o movimento das partículas de um gás) depende da temperatura. Em um recipiente fechado, a energia cinética pode ser medida pela determinação da pressão do gás. Isso pode ser feito por meio de um termômetro a gás acústico.

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Ressonador acústico usado na determinação da constante de Boltzmann (imagem do NPL do Reino Unido)

As medições correspondentes realizadas nos institutos de metrologia da Inglaterra, Itália,França, China e Estados Unidos atingiram uma incerteza de medição de menos de 1 ppm (uma parte por milhão), preenchendo assim a primeira condição estabelecida pelo Comitê Consultivo de Termometria (CCT) para a redefinição do kelvin.

Maiores informações sobre o termômetro a gás acústico podem ser encontradas no seguinte link da internet:

https://bscw.ptb.de/pub/bscw.cgi/d188630/text/work_packages/WP3/introduction/WP3_project_description.htm

Outra condição, no entanto, estipulava que um segundo método independente alcançasse incertezas de medição igualmente pequenas. Por conta disso, o PTB lançou em 2007 o seu projeto com base na termometria a gás de constante dielétrica que  atingiu 1,9 ppm e que, portanto, atendeu à exatidão requerida.

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Parte principal do termômetro a gás de constante dielétrica do PTB

Este termômetro especial explora o fato do gás hélio variar a capacitância dos capacitores do termômetro e, consequentemente, tornar possível a determinação da massa específica do hélio a uma dada pressão por meio de medições elétricas, assim como, via massa específica, medir também a temperatura. As medições de capacitância podem ser realizadas com grande exatidão, sendo a incerteza de medição de poucas partes por bilhão.

Porém, para se atingir tal exatidão, tudo deve estar em perfeita sintonia. Isto é, prezando pela obtenção da menor incerteza possível na determinação da constante de Boltzmann, houve a necessidade de se determinar em altas pressões (até 7 MPa) as propriedades dos materiais dos capacitores do referido termômetro e garantir que a pureza do gás hélio utilizado fosse melhor do que 99,99999 %. Além disso, o melhor padrão do PTB para medições de pressão, que se baseia em balanças de pressão, teve que ser melhorado. Isto é, investiu-se na determinação da área efetiva de conjunto pistão-cilindro utilizado em balança de pressão de referência com incerteza extremamente reduzida. Maiores detalhes sobre a metodologia utilizando o termômetro a gás de constante dielétrica podem ser encontrados no seguinte link da internet:

https://bscw.ptb.de/pub/bscw.cgi/d188630/text/work_packages/WP2/introduction/DCGT_method.htm

Esses desenvolvimentos, que são únicos em todo o mundo, só foram bem sucedidos graças a projetos de cooperação dentro do PTB (especialmente com os dois grupos de trabalho em “Pressão” e em “Padrões Geométricos”), assim como graças à cooperação internacional em larga escala, envolvendo diferentes Institutos Nacionais de Metrologia.

O valor atual da constante de Boltzmann é de 1,380649·10-23 joules por kelvin (J·K-1).

A redefinição do kelvin não causa efeito imediato na prática da medição ou na rastreabilidade das medições de temperatura e, para muitos usuários, isso passará despercebido.

A redefinição estabelece as bases para futuras melhorias. Uma definição que não dependa de qualquer substância (água, por exemplo) e de restrições tecnológicas permite o desenvolvimento de novas e mais exatas técnicas que permitam e tornem as medições de temperatura rastreáveis ao SI, especialmente em temperaturas extremas.

Com a redefinição, a orientação sobre a realização prática do kelvin dará suporte à sua ampla disseminação, por meio da descrição de métodos primários para a medição da temperatura termodinâmica e igualmente através das escalas definidas ITS-90 e PLTS-2000.

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Pesquisa bibliográfica realizada pelos autores nos seguintes links da internet e de onde consideráveis partes do texto deste artigo foram extraídas:

https://www.nist.gov/pml/redefining-kelvin

https://studybay.com/blog/boltzmann-constant/

https://www.significados.com.br/temperatura/

 

http://brasilescola.uol.com.br/o-que-e/fisica/o-que-e-temperatura.htm

https://www.bipm.org/utils/common/pdf/CC/CCT/Redefinition_of_the_kelvin_2016.pdf

https://phys.org/news/2017-04-paving-redefinition-temperature.html

https://www.ptb.de/cms/en/ptb/fachabteilungen/abt7/fb-74/ag-743/new-determination-of-boltzmanns-constant.html

https://bscw.ptb.de/pub/bscw.cgi/d188630/text/work_packages/WP3/introduction/WP3_project_description.htm

https://bscw.ptb.de/pub/bscw.cgi/d188630/text/work_packages/WP2/introduction/DCGT_method.htm

http://iopscience.iop.org/journal/0026-1394/page/Focus_on_the_Boltzmann_Constant

http://iopscience.iop.org/article/10.1088/0957-0233/17/10/R01/meta

https://www.bipm.org/utils/common/pdf/SI-statement.pdf

 

 

 

 

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